Iniquidade
sorrisos incandescentes
bocas escancaradas
a gargalhada ainda ecoa no pátio
Folhas mortas

As folhas mortas
desenham um balé
sob o redemoinho
girando, girando
na cadência de Éolo
sonhando, sonhando
na canção do vento.
Com vários formatos
e tons multicoloridos
os dejetos da Primavera
estão livres para brincar
e como são leves,
alcançam rapidamente
as pesadas portas do céu
e fazem a festa
com os querubins
sob o olhar complacente
da Lua e das estrelas
que ouvem as trombetas
solenemente anunciar:
O Outono chegou!
Sobre símbolos e signos
Ideogramas vermelhos
alinhados sobre a pele alva
transmitem verdades orientais,
transmutam vontades urgentes
aplacam a fome dos olhos
mas da alma ingênua,
latinamente aventureira,
não saciam os desejos
nem repelem os desvios
dos caminhos bifurcados
salpicados de amor e sexo
temperados com a magia
do sal que brota das lágrimas
ora com o sumo doce da saliva
Versos de Lao Tse
requerem costas largas
e mãos firmes no traçado
para inserir na carne
a sabedoria solene,
subindo e descendo
no corpo da jovem,
desde o umbigo às nádegas
do coração ao espírito
do espinho ao caule
Estas pichações na epiderme
perfuram os órgãos vitais
dos incautos navegantes
deste mar turbulento
a que chamam vida,
e assim sucumbimos,
todos nós,
na vã tentativa de decifrar
símbolos e significados
sem termos a devida competência.
O portão do juiz
Josevaldo chegou cedo ao sobrado do doutor juiz. O homem falou que queria o serviço terminado até as cinco da tarde. A casa da Rua Harmonia, no bairro da Vila Madalena pertencia à mãe do doutor. Separado da esposa por incompatibilidade de gênios, seu magistrado voltou a morar na casa dos tempos de sua solteirice.
- Mãe, não se preocupe que vou dar uma geral neste museu. Disse o filho á mãe bem idosa
Resolveu por começar trocando o portão de ferro da entrada da garagem. Aqui entra o Josevaldo na história, pela porta da frente é claro.
- Josevaldo, meu filho, quero este portão velho no chão e o novo instalado para ontem, viu? Disse o juiz imitando o sotaque de nordestino, enquanto apertava os óculos contra os olhos miudinhos.
Como o misto de pedreiro, serralheiro e azulejista tinha cinco bocas para alimentar, morando bem para lá do bairro de Guaianases, na periferia de São Paulo, não contou conversa.
- Deixa comigo doutor juiz, é dois palito e o portão novo tá aprumado!
Pois é, o juiz do Fórum da Barra Funda estava com seu Pajero Full Zero quilômetro em frente à casa, aguardando o término do serviço. Contava que até a noitinha já poderia guardar seu valioso veículo na garagem, porque na rua não podia dormir, não. Sabe como é, apesar do alarme instalado, existem pessoas que só por maldade riscam a pintura com um prego, caco de vidro ou coisa que o valha.
- Cruz credo! Seu doutor até se arrepiava ao pensar nestas coisas… Pintura perolizada, o bicho na oficina sofrendo reparo… Arre égua!
Josevaldo largou a sacola na garagem e não se fez de rogado, sentou logo a pua no trabalho. Era sábado e com o dia beirando aos trinta graus de temperatura, o pedreiro suava em bicas.
Para arrancar o portão antigo gastou quase três horas. Não contava com a dureza do concreto velho nas colunas. E dá-lhe marretada atrás de marretada! Tac! Tec! Toc!
Vez por outra, seu doutor botava o cabeção para fora da janela e arreliava:
- Olha, olha, Josevaldo, se você não trabalhar direito eu não pago, viu?
Outras vezes a ameaça era pior:
- Se não ficar pronto, você não vai mais construir meu sítio novo lá em Santa Isabel, falei?”
Puxa vida, isto era tudo o que o pedreiro não queria. Contava com esta obra para ajeitar a vida do filho mais novo, o Rosevaldo, que nasceu com uma deformidade genética no braço direito e já estava passando do prazo para fazer a cirurgia corretiva. Era um dinheirinho imprescindível, logo agora que estava uma paradeira geral por causa da crise…
Josevaldo enquanto ouvia os impropérios de seu doutor, levantava a cabeça e fazia o nome da cruz.
A tarde avançou rapidamente. Nem deu tempo de Josevaldo almoçar. Suas pernas tremiam um pouco, mas, como ele dizia “vamo que vamo!”
- Diacho, eu devia de ter trazido o Toinho para me ajudar, agora tô lascado! Resmungava o operário.
Seis da tarde o magistrado irrompeu irritadíssimo no “canteiro de obras” para fustigar mais uma vez nosso humilde obreiro
- Porra, criatura! Você vai me deixar na mão! Olha a chuva que vem por aí! Gritava o patrão, com as mãos sujas de pasta de amendoim que escorriam do meio do pão francês mordiscado com prazer. Nem bem terminou de vituperar, os pingos grossos começaram a enlamear a calçada.
-`Tá que o pariu! Gemeu Josevaldo já entrando em desespero.
- São 8 horas da noite e eu ainda estou aqui. Ai, meu padim padre Cícero!
A chuva forte não dera trégua. Mesmo coberto com uma grossa capa plástica, os olhos embaçados pela água e pela fome não deixavam o pedreiro terminar o serviço. E tal qual o mitológico Prometeu acorrentado, o pobre homem era torturado sem perdão.
Após terminar de comer a famosa bacalhoada de sua mãe, seu doutor nem palitou os dentes e já foi crescendo para cima do pedreiro com carga total:
- Cacete, seu porra! Anda com este portão que eu tenho que guardar meu carro logo. Já são dez horas da noite e a rua está cheio de nóias. Se triscarem no meu Pajero você está fodido, entendeu, f-o-d-i-d-o!”
Agora a chuva diminuiu, quase parou, mas o corpo de Josevaldo já não respondia direito aos seus comandos. Faltava apenas encaixar o novo portão nos pinos, mas qual o quê! As mãos trêmulas não ofereciam a firmeza necessária.
Seu doutor veio pela última vez maltratar o infeliz obreiro. Desta feita nosso herói já não atinava com as idéias. Ele observava atônito a bocarra de seu doutor que abria e fechava emitindo um rosnado a emplastar de sofrimento o ar ainda quente. Josevaldo pensava nos filhinhos, pensava na mulher que o estava esperando, pensava na falta de crédito do aparelho celular, pensava no boteco da esquina de sua casa, os amigos jogando sinuca… Eis que o portão novo, escorrega das mãos do pedreiro e cai por cima de seus dois pés, esmagando os metatarsos e as falanges de uma maneira bestial. Daí por diante, os sentidos se esvaíram e o nosso super-homem tomba desmaiado. O vizinho da casa em frente vem ver o que acontece. A sirene da ambulância afasta os veículos dos jovens de classe alta que produzem um tráfego infernal no sábado á noite.
Dizem que Josevaldo deu sorte na Santa Casa de Misericórdia e entrou logo para o centro cirúrgico.
Meia noite seu doutor toca a campainha do vizinho ao lado que jogava cartas na sala com seus amigos.
- Vizinho – era assim que ele chamava a todos da vizinhança -, será que posso guardar meu carro na sua garagem por esta noite?
- Ora, não tem problema, dr. Paulo, minha mulher está para o Guarujá e o meu mais velho está em Ibiuna com a namorada, tem duas vagas, fique á vontade!
Finalmente, seu doutor chama o vigia da rua, pede a ele para encostar o portão no vão da garagem e diz, estendendo-lhe um panetone que sobrara das festas de fim de ano:
- Dá uma reforçada na vigilância para mim, tá bom?
_Ô, chefia, não tem de quê, deixa comigo! Vou ficar de olho. Na sua casa ninguém se mete a besta, não!
_ Obrigado Nelsinho, agora vou dormir que estou só o pó da rabiola. Boa noite!
_ Boa noite, dr. Paulo.
Adjetivos e substantivos
constelações de pensamentos insensatos
sinalizam desejos inexplicáveis
que, sem fazer cerimônia,
adentram o coração dos poetas
dos loucos e dos librianos
como querendo inflar uma canção
que brote do fundo
de uma lata de óleo vazia
esquecida ao pé de um cajueiro
vergado sob o peso de seu fruto
abundantemente maduro
mas imprudentemente temporão
deixado para trás
como quem dá as costas aos traidores
aos amigos que abandonam
suas mulheres grávidas,
às idéias que não mais funcionam
aos adjetivos envelhecidos e malsãos
que cuidam de empobrecer a poesia
e por si mesmos
são descartados ao acaso,
na poeira das constelações
mas ao serem tocados pela magia do Universo
retornam vivificados e exuberantes
na forma inexplicável da inspiração.
Perdas e ganhos
Andar, correr, subir ladeiras,
Abrir a boca e escancarar a garganta
Para aparar as gotas gorduchas da chuva
E fazer o coração reiniciar a nova viagem rumo ao sonho,
Gritando em lá maior, com a aorta meio torta
De tanto levar porrada da vida, de tanto tentar crer
Que a esperança é a fé no olho pequenino do bebê-propaganda
É a crença de que sempre haverá uma rede armada sob o trapézio,
Que Nemésio, em sua bike azul, baterá amanhã cedo em nossa porta
(Para trazer o pão nosso de todo dia, fumegando de lembranças)
E partirá assoviando um samba da trilha da última telenovela.
Dançar, cantar, tocar violão madrugada adentro
Para os bêbados e os cachorros de subúrbio
Ouvindo o murmúrio dos motores dos caminhões
Que desfilam pela estrada longa e intangível
Onde os andarilhos e os trilhos dos trens
Cruzam-se e afastam-se como o Amor e o Ódio
Como as moléculas de sódio das espumas do mar
E as algas sem-vergonhas, cheias de calor.
Recostar-se, meditar, ensaiar o último pensamento
Esquadrinhar os prós e os contras, as perdas e os ganhos do dia
E dormir, dormir profundamente.
A Zé Rodrix
