O céu estava forrado por centenas de balões naquela tarde de domingo. A folhinha do Sagrado Coração de Jesus, pendurada na parede da cozinha marcava 21/06/1970. Estávamos todos gritando vivas e pulando feito touro em rodeio, com as veias jugulares quase explodindo no pescoço de tanta euforia. Em cada esquina, o som que se ouvia em unanimidade nos aparelhos de rádios, sempre no último volume, era o tão conhecido hino que seguíamos cantando indefinidamente:
“Noventa milhões em ação,
Pra frente Brasil,
Do meu coração…
Todos juntos vamos,
Pra frente Brasil,
Salve a Seleção!”
O juiz mal acabara de apitar o encerramento da partida entre Brasil e Itália e a Vila Carmozina em São Paulo entrou em catarse. Cada garoto pegou sua bola de couro, de plástico de meia e saiu à rua a driblar e a chutar, desesperados em comemoração ao tricampenonato do Brasil e à posse definitiva da taça Jules Rimet. Os vizinhos todos, exceto seu Carmelo que era italiano e meu pai, que sempre vinha com a mesma ladainha quando tinha jogo de futebol pela TV – “os jogadores ganham uma fortuna e o povo morre de fome” – se abraçavam e comemoravam loucamente a conquista como se estivessem dentro do estádio Azteca na cidade do México. Quase podíamos abraçar um Pelé imaginário, um Rivelino, um Tostão, o goleiro Félix – a muralha – e o técnico Zagalo. Com o capitão Carlos Alberto levantarmos a taça tão desejada. Ah, como a vida era boa, como era bom ser brasileiro naquele momento!
Todos regurgitavam felicidade e eu estava lá no meio, dançando e imitando os dribles e gingados insuperáveis do rei Pelé. Foi neste cenário alegre que ao erguer a vista a alguns metros adiante, topei com a figura triste do colega Giba, sentado no meio fio, na calçada em frente a sua casa, tendo a cabeça entre as mãos, em estado de choro convulsivo. Eu sabia por instinto que aquilo não era choro de alegria, não. Mas fiz questão de virar o rosto para não contaminar minha felicidade naquela hora. Puro egoísmo, quem sabe.
O Giba era irmão mais velho do Bitoco, nosso amigo e estava de volta ao bairro depois de um mês em que ele não dava as caras no pedaço.
Mas este dia que estou narrando teve um começo inesquecível também, pois, logo pela manhã, um caminhão das lojas Mappin parou em frente à minha casa para descarregar nossa primeira TV colorida. Entrega urgente para um domingo especial. Meu irmão mais velho – que era caixa do Banco Mercantil – comprara o aparelho – marca Telefunken em prestações e fizera segredo em nossa casa. Bem que eu havia percebido umas conversas diferentes que se esvaziavam quando eu mostrava interesse. Ele e seus amigos falavam em transmissão em cores, em calcinhas com gosto de frutas, em fulano que apanhava no pau-de-arara – coisas que em respeito aos meus dez anos de idade -, eles não deixavam vazar para mim. Bem que eu tentava, com cara de sonso, me aproximar devagarzinho para ouvir o papo dos mais velhos, fingindo que estava brincando com algum objeto nas mãos. Mas quando a turma percebia minha pesença, a prosa diminuia e mudava de rumo.
Pois bem, a partida final estava marcada para as 17:30h e seria a primeira Copa do Mundo a ser transmitida em cores. Com o nosso novo aparelho de TV – que era “uma brasa”- é lógico que a torcida se reuniria em minha casa, pelo menos os garotos que moravam nas casas ao redor da minha.
Tudo combinado, Nico, Tatá e Lalau trariam o açúcar, Dinho, Mané e Vavá, os pacotes de Ki-suco de vários sabores, e as embalagens de milho de pipoca ficavam por conta dos demais. Não queriamos que minha avó se intrometesse em nossa reunião, a não ser para vigiar o fogão e fiscalizar a algazarra.
Neste dia jogamos futebol das duas às cinco da tarde. Com certeza todos os garotos do bairro, todos os meninos do Brasil inteiro, que tinham condições, correram atrás de uma bola em algum canto do país.
Nossas partidas na rua ou no campinho eram assim, cada um escolhia para si um nome de um jogador da seleção, eu, por exemplo, era sempre o Jairzinho. Na verdade, eu queria mesmo era ser o Pelé mas este era exclusividade do Giba que driblava como ninguém e metia a mão na “fuça” de quem o contrariasse. Para dar mais veracidade à pelada, alguém, sentado em cima do muro, ia narrando o jogo até se cansar e trocar de lugar com algum dos jogadores.
E desta maneira a fama da seleção canarinho ia se perpetuando país afora, se avolumando cada vez mais, em cada esquina, cada bairo, cada cidade.
Mas, continuando a narrativa, naquele domingo, todos estavam reunidos em grupos, nas igrejas, nos botecos, nas pracinhas, – menos seu Honório, pai do Bitoco e do Giba. Estranhamos naqueles dias como a família de seu Honório estava mesmo esquisita. Ele e a esposa não eram mais vistos na rua. Ele saia bem mais cedo para o trabalho, ainda escuro e ao voltar, evitava passar em frente às casas dos vizinhos conhecidos. Havia muito fuxico sobre o que estava acontecendo. Diziam as santas línguas que o Giba tinha se envolvido com a Polícia, lá na faculdade em que ele estudava, e seus pais, gente humilde, estavam envergonhados com a situação.
Cinco minutos antes de começar a partida dos sonhos, a pipoca ja estava pronta, o refresco enchia as jarras em formato de abacaxi e os cubos de gelo eram trazidos por cada participante do evento em forminhas de plástico multicolorido
Finalmente, o televisor foi ligado, contando com o apoio imprescindível de seu Elias no telhado, para buscar a melhor posição da antena de modo que a imagem não tremesse nem chuviscasse além do tolerável, enfim, era a seleção canarinho que entrava em campo. E como era lindo apreciar o colorido do uniforme verde e amarelo pela primeira vez! Enchia os nossos olhos e corações.
Pois bem, penso que estes noventa minutos mágicos deveriam ser congelados e eternizados por um decreto qualquer, se bem que em meu coração eles já estão gravados feito uma tatuagem da taça cobiçada.